Setembro de 2024 – Vol. 29 – Nº 9
Fernando Portela Câmara, MD, PhD
Diretor-fundador do Instituto Stokastos
Na manhã do dia 14 de dezembro de 1912, no Centro de Neurologia do eminente
professor doutor Oskar Vogt (1870-1959), em Berlim, sua secretária, Sra. Lotze, leu as
instruções que o doutor deixara na noite anterior: “Objeto da experiência: animal forte,
pêlo abundante, cor pardacenta/negra, macho, 575 g. O animal deve receber diariamente
três pancadas não muito fortes com o martelo de percussão no osso frontal”.
A secretária cumpriu as ordens todas as manhãs e, no dia 24 de dezembro, antes do
feriado de Natal, anotou: “Enquanto nos primeiros dias o animal andava de um lado
para outro alegre quase logo depois das pancadas, aceitando o alimento de imediato,
agora ele está mais parado, e fica assim durante horas no mesmo lugar, com o olhar
fixo. O apetite diminuiu”.
No dia 26 de dezembro, o professor Vogt anotou: “O animal não se mexe com as
pancadas, de tal maneira que já não é mais necessário segurá-lo. A partir de hoje,
pancadas leves, três vezes por dia”.
Wussow, o tratador de animais prosseguiu a experiência seguindo as instruções do
professor doutor.
No dia 4 de janeiro, o professor retomou sua experiência. À noite, escreveu em seu
bloco: “O animal foi encontrado pela manhã deitado do lado esquerdo, com as patas
anteriores esticadas; ao ser tocado, não ocorreu nenhum movimento de defesa. Ele se
restabelece no decorrer do dia, mas aceita pouco alimento, detendo-se na metade da
comida, sem mudar de posição. Seu comportamento sofreu uma mudança notável e sua
expressão está acentuadamente tímida”.
20 de fevereiro. Após constantes pancadas com o martelo na testa, “a decadência da
cobaia fazia progresso”, o professor notou que o animal deixava-se atacar por seus
companheiros da gaiola, “sem se defender”.
Durante os meses de março e abril o animal foi espancado e beliscado. Às vezes fazia
movimentos de mordida, às vezes só piscava. Tinha acessos de convulsão,
interrompidos por espasmos da pata traseira esquerda cada vez com maior frequência.
Em maio, a cobaia estremecia quando era colocada na mesa de exame. No começo de
junho constatou-se a mesma reação quando o animal tocava na palha da gaiola. O
professor conseguiu provocar um “ataque epilético” com a vibração de firmes batidas
do pé no chão. Anotou no protocolo de 4 de junho: “Palmas também provocam um
ataque epilético (efeito de terror?)”. “Urina durante o ataque” anotou a secretária na data
de 17 de junho.
A cobaia definhava rapidamente. A Sra. Lotze sabia que os dias do animal estavam
contados.
Em 27 de junho, ocorreram fortes ataques na cobaia “ao menor estímulo, mesmo sem
querer”. O professor acrescentou “cócegas atrás das orelhas causam fortes ataques que
são relativamente duradouros (mais ou menos de um a um minuto e meio); no começo
do ataque, guinchos roucos”.
“1º de julho de 1913: inúmeros ataques todos os dias na gaiola, ao que parece sem
motivo especial”.
“7 de julho de 1913: após um forte ataque ao qual precederam seis ataques de tipo
médio, ocorreu o óbito”.
Resultados semelhantes foram reproduzidos em mais de 200 ratos.
O que o doutor Vogt quis mostrar com isso? Ele queria reproduzir experimentalmente
uma “neurose”, e provar sua tese de que toda doença mental resulta de um impacto
traumático na funcionalidade neural. Mais tarde, Pavlov provaria isso incidentalmente,
ao observar que parte dos cães que salvara de uma grande inundação desenvolveram
sintomas típicos das neuroses observadas na I Guerra Mundial. Os animais foram
expostos por horas a uma situação de extremo pavor. Podemos acrescentar ao rato de
Vogt e aos cães de Pavlov um outro fator. Em um experimento, ratos eram jogados na
água e salvos pouco antes de se afogarem; a experiência era repetida várias vezes.
Constatou-se, posteriormente, que esses ratos resistiam quando o salvamento era adiado
por um tempo maior, eles se esforçavam em continuar nadando. Porém, ratos que não
tiveram anteriormente a experiência de salvamento (não foram condicionados) morriam
em pouco tempo em sístole, a marca de extremo pavor.
A tortura psicológica orientada é um instrumento frequente nos regimes que perseguem
seus opositores políticos e mantem a população sob uma censura rígida. No mundo
atual, estamos vendo o declínio da democracia em várias países do Ocidente.
Consequentemente, recrudescem vocações totalitárias e sua atração pelo uso dessa
forma de tortura. Esta se baseia na progressiva dissolução existencial do sujeito na
seguinte ordem: Isolamento – Privação – Desorientação – Desamparo – Tortura física –
Desespero. A experiência é especialmente destrutiva naqueles que vivem sob a angústia
de um superego ameaçador.
O sujeito é preso ou sequestrado inesperadamente e levado a um local isolado. Perdido e
sem ter a quem recorrer, indefeso e sem saber o que acontece, ele se desorienta. Sua
psique não processa o significado da situação, as relações de causa e efeito se perdem
em fantasias e medo, a ansiedade começa a desfazer o equilíbrio psicovegetativo, ele
pergunta e ninguém responde ou diz o que está havendo. Então vem o desamparo, a pior
de toda experiência niilista; rompe-se todas as defesas psíquica e instala-se a depressão.
Ele não sabe por que está ali, não há um processo ou algo que o oriente sobre a sua
situação, não tem contato com um amigo, familiar ou advogado; toda assistência médica
ou espiritual lhe é negada, está só e indefeso. Ele é tomado por um intenso desespero,
sua vida perdeu todo sentido. Esse é o momento em que é interrogado; ele não tem
escolha, tem de confessar o que querem que ele diga, seus apelos não serão ouvidos; se
resiste será torturado fisicamente seja por agressão, seja por pressão sensorial, seja por
privação de necessidades vitais. Ele então deseja ir para uma prisão, onde espera
encontrar alguém com quem possa conversar. A liberdade já não lhe interessa, ele quer
alguém que fale alguma coisa com ele, que o faça sentir-se humano novamente. E então
vem o desespero; tudo acabou, não há salvação, não há lógica, não há mais sentido em
viver. O indivíduo é agora um zumbi, ou morre, ou se suicida.
O invariável desvio moral e o sadismo perverso que caracterizam os indivíduos
encarregados de toda essa operação, torna o processo eficiente e infalível. Mas não
basta ser “obediente à autoridade” e “defender a democracia”; é necessário ter uma
secreta predisposição para o impulso predatório.
Embora fosse um socialista ativista da extrema-esquerda, o doutor Vogt não era
comunista, mas se dava bem com os bolcheviques e era amigo dos neurologistas e
psiquiatras soviéticos mais proeminentes. Ele discordava da “psicologia objetiva” do
seu amigo Betcherev, para o qual as doenças mentais não tinham raiz no cérebro, mas
na “ordem da sociedade capitalista”. Vogt não concordava com esse discurso humanista
do comunismo – que convergiria no Gulag – e defendia que toda causa deveria ser
buscada na organização cerebral. Ele ajudou a fundar o Instituto de Pesquisas do
Cérebro de Moscou, em 1925.
O ilustre neuropatologista tinha uma obsessão pela qual era muito conhecido nos meios
acadêmicos: acreditava que a genialidade dos grandes pensadores tinha uma base
neuranatômica. Isso lhe valeu a honra de estudar a neurohistologia do cérebro de Lênin,
“o maior gênio da Rússia”. Perseguido pelos nazistas sob a acusação de colaboração
com os bolcheviques, Vogt refugiou-se em Neustadt, no fundo da Floresta Negra,
levando consigo o cérebro do camarada Vladimir.
Sugestões de leitura:
Cannon WB. “Voodoo’ Death. American Anthropologist 44 (2): 169- 181, 1942.
Ivanov-Smolensky AG. Essays on the Patophysiology of the Higher Nervous Activity.
Moscou, 1954.
Spengler T. O Cérebro de Lênin. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
Silveira A. In Memorian, disponível em
https://www.scielo.br/j/anp/a/CGtFYHtXLRcHg5zN5rTtwsm/?format=pdf&lang=pt
(Acesssado em 13/08/24)